Pedi algo para beber e comecei a conversar pelo WhatsApp.
Por certo cacoete profissional, eu costumo parar um tempo para observar o ambiente quando chego em lugar. Tento me sentar de frente para entrada, o que é uma atitude clichê, reconhecível para quem já leu algum romance policial.
Mas eu não sou detetive, estava distraído naquela tarde e não notei a chegada de dois jovens na padaria. Um se portou na entrada e outro se dirigiu aos fundos. Eu estava na primeira mesa e fui o primeiro a ser abordado, quando anunciaram o assalto.
O garoto destravou uma pistola, pegou meu celular e exigiu por duas vezes que eu fornecesse a senha. Reparei que ele era muito jovem, muito magro, não aparentava qualquer nervosismo e usava fones de ouvido. Ele repetiu minha senha umas três vezes, como estivesse ditando a alguém.
O assaltante colocou meu celular no bolso quando começamos a ouvir gritos dos fundos da padaria. Um homem mais velho tinha resistido a entregar o celular e tentava se defender do segundo assaltante. O primeiro assaltante empunhou a arma, andou até ele e disparou sem pestanejar.
Devido à natureza do meu trabalho, já vi cadáveres de pessoas baleadas, já acompanhei autópsias, já vi uma pessoa ser esfaqueada. Mas nada te prepara para testemunhar uma pessoa tomando um tiro. Primeiro vem um estrondo seguido por um momento de milionésimos de segundos em que você se pergunta o que diabos aconteceu e só então seu instinto de sobrevivência alerta que você deve correr dali.
Os assaltantes saíram a pé pela rua Artur de Azevedo, para onde eu também tinha corrido. Eles passaram por mim.
Uma médica parou o carro e entrou na padaria para atender o homem baleado. Moradores saíram de suas casas para entender o que estava acontecendo. Policiais militares chegaram uns cinco minutos depois do ocorrido. Tentaram sem sucesso encontrar os assaltantes. O baleado foi levado numa viatura da PM para o Hospital das Clínicas porque a ambulância da Samu demoraria dez minutos para chegar o local.
Chegaram mais policiais militares e dois investigadores da Polícia Civil. Um dos sócios da padaria abriu o notebook para pegar as imagens da câmera de segurança. Chegou a informação de que um dos celulares roubados emitiu sinais de sua localização na Praça da Sé, centro da capital da paulista.
Policiais comentaram que os assaltantes devem ter entrado na estação Fradique Coutinho, Linha Amarela. Alguém afirmou que deveriam buscar as imagens das câmeras de segurança do metrô, mas um agente afirmou que a burocracia para ter acesso “era enorme e demoraria uma eternidade”.
Enquanto isso, eu prestei declarações para vários agentes, consegui falar com minha mulher para bloquear meus aplicativos de banco e sentia tédio, raiva e cansaço e, evidente, impotência.
Fui para delegacia de Pinheiros, o 14º DP, onde vi um senhor de idade de roupas enlameadas e arranhões pelo corpo: ele tinha sido atracado com outro assaltante de celulares.
A Folha informa que a quantidade de queixas de roubos de janeiro a dezembro de 2024 na área do 14º DP foi a maior da série histórica, iniciada em 2002.
“Foram 3.569 registros de ocorrências no período contra 3.391 no ano anterior. No caso dos furtos houve recuo (passou de 9.020 em 2023 para 8.910 no ano passado)”, informa a reportagem de Francisco Lima Neto.
O homem baleado está em estado estável.
O governador Tarcísio de Freitas e seu secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, deve se sentir orgulhosos desses índices de criminalidade.
Prestei depoimento depois de duas horas depois do ocorrido. Um investigador perguntou a minha profissão e quando soube que tipo reportagem eu fazia afirmou
“Que ironia, né?”. Pois é.
Quando cheguei em casa me lembrei que um dono da padaria me pediu desculpas.
Não há ironia maior essa: uma vítima pedir desculpas para outra vítima. Violência também é isso.
Opinião
Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.