Em seu primeiro mês no cargo, Donald Trump não apontou sua metralhadora giratória apenas para as estruturas do Estado americano. Sua blitzkrieg mais consequencial até aqui é contra o sistema internacional liderado por Washington há 80 anos.
O presidente tem usado seletivamente as regras do jogo, colecionado mudanças de posicionamento geopolítico em sequência, tratando de trivialidades anedóticas como renomear o golfo do México como sendo “da América”, no sentido aqui de Estados Unidos, ou reabilitando Vladimir Putin.
De todo seu arrazoado, resumido no quadro que acompanha este texto, saltam aos olhos três itens. Primeiro, a obsessão pelo uso da coerção tarifária, ameaçando uma guerra global de alíquotas de importação que pode ter consequências funestas para os próprios EUA. O embate com a China ainda está no começo.
Segundo, a Faixa de Gaza. Sua mirabolante proposta de tomar para si o território em ruínas, removendo os 2,3 milhões de palestinos para sempre de lá, só encontrou aplauso público na direita em Israel —coube ao governo de Binyamin Netanyahu dar continuidade prática ao plano.
Por fim, o mais consequente em termos globais ao lado das tarifas, o ímpeto para acabar com a Guerra da Ucrânia sem ouvir muito o que têm a dizer ucranianos, quanto mais os aliados europeus.
O telefonema a Putin, as negociações abertas em Riad, o virulento discurso de seu vice em Munique e a agressão verbal a Zelenski, chamado de ditador e colocado frente a um ultimato nesta quarta-feira (19), sintetizam o aspecto mais relevante das ações de Trump até aqui.
O mundo como o conhecemos foi formado sobre os escombros da Segunda Guerra Mundial, de onde emergiram EUA e União Soviética como líderes e rivais.
Washington sempre teve a mão mais alta no jogo do ponto de vista econômico, e vendendo valores ao lado de armas e comércio, conseguiu estabelecer-se como líder do chamado mundo livre, aspas a gosto.
Sem o mesmo dinamismo econômico, Moscou empregava ideologia e dominação autoritária sobre seus satélites, particularmente no Leste Europeu, mas não só, como o Afeganistão viria a saber em 1979.
Todo um arcabouço opera o sistema. No lado econômico, as instituições forjadas pelo Acordo de Bretton Woods (1944), como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. No político, a ONU, mais particularmente seu Conselho de Segurança com os vencedores de 1945.
Do ponto de vista americano, ambas as pernas serviam à sua tática de liderar consensos entre aliados, que em troca recebiam benesses. Do Plano Marshall que reconstruiu a Europa ao guarda-chuva militar americano centrado na aliança Otan, a coordenação amplificou o poder americano.
O fim da Guerra Fria em 1991, a ascensão chinesa e o terrorismo islâmico nos anos 2000 e, por fim, a reação prometida por Putin pela expansão da Otan a leste montam um quadro bastante atribulado agora. As instituições, como advogam o Brasil e outros, estão de fato obsoletas, embora cada um defenda uma saída diferente.
Em seu primeiro mandato (2017-21), Trump denunciava essa inadequação sob a ótica de seu populismo de rede social, mas foi relativamente contido pelo establishment que ainda o digeria. Joe Biden (2021-25) retomou a tradição das alianças, com a mão de Putin na Ucrânia no caso europeu e tomando a frente na Ásia.
Agora, o empoderado Trump faz um disparo direto contra seus aliados. Como resumiu a primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, no Parlamento de seu país, que na questão da Groenlândia tem sua briga particular com Trump: “É pior do que a Guerra Fria”. O continente segue atônito, com sucessivas reuniões prometendo gastar mais com armas e só.
Lá Fora
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Apoiadores do americano dizem que tal alienação é tática, que visa bagunçar os tabuleiros apodrecidos, com sorte reorganizando as peças em favor dos EUA. “Quando vamos entender que Trump quer nos chocar e forçar a agir?”, escreveu o ex-premiê britânico Boris Johnson.
Críticos são mais sombrios, prevendo uma anomia na base da lei do forte, até porque por ora não há quem faça frente ao poderio americano.
Contra tal cenário há a possibilidade de que Trump, mercurial como é, simplesmente mude de ideia novamente sempre que considere ter tido alguma vantagem. Foi assim em casos menores, como na Colômbia, Canadá e México. A imprevisibilidade, afinal, também é um método.