O tarifaço contra todos os países anunciado na semana passada pelo presidente Donald Trump pode fazer a China parecer melhor do que realmente é, mas nem por isso os chineses ou qualquer outro país vão tomar o lugar dos Estados Unidos, avalia Thomas Fingar, pesquisador do Centro de Economia e Instituições da China da Universidade Stanford.
Fingar, que já chefiou a Divisão da China do Departamento de Estado, considera que as sobretaxas aplicadas por Trump serão negativas para todas as nações.
“Hesito em prever como outros países vão reagir, exceto o fato de que isso deu mais ou menos a todos um incentivo para contornar os EUA”, diz à Folha.
Leia a seguir a entrevista.
Donald Trump anunciou nesta semana tarifas contra praticamente todos os países. A China já anunciou retaliação, taxando em 34% os produtos americanos. Estamos diante de uma guerra comercial?
Não acho que a metáfora da guerra funcione para mim. Não sei o que Trump está tentando fazer. Alguém pode dizer que isso é um jogo de impor uma tarifa escandalosa na esperança de que alvos específicos, que basicamente são todos, pudessem ceder ao que eles dizem ser suas exigências. Com isso, reduziriam barreiras ao comércio com os EUA. Para mim, não faz sentido com a vasta maioria dos alvos das tarifas de 10%.
Por quê?
Hesito em prever como outros países vão reagir, exceto o fato de que isso deu mais ou menos a todos um incentivo para contornar os EUA, fazer dos EUA um fornecedor de última instância para manter a linha, para uma espécie de frente unida para competir uns com os outros.
Se a avaliação é que os holandeses ou os franceses ou os alemães ou os brasileiros ou alguém mais esteja falando sobre fazer algo para eliminar uma tarifa de 10% a fim de obter uma vantagem comparativa para acesso ao mercado dos EUA, se essa é a lógica, ok. Talvez haja algo racional nisso, mas acho mais provável que os alvos dessas baixas tarifas estejam por se unir.
Meu principal concorrente comercial tem a mesma tarifa ou uma mais alta aplicada contra ele. Por que eu deveria ceder se estamos competindo em um terreno nivelado? Acho que Trump vai fazer os EUA pagarem um enorme preço geopolítico. Mas o que ele acha que vai ganhar com isso, eu não sei. É provável que ele consiga coisas realmente significativas com isso? Duvido.
O sr. mencionou um preço geopolítico para os EUA. Qual seria?
A tendência de grande parte do mundo na maior parte do tempo era tentar trabalhar com os EUA na medida em que não podiam automaticamente fazer o que Washington queria, mas inclinavam-se a colaborar por considerar como benigno, se não benéfico, para seus interesses. Acho que ele inverteu isso. Isso vai induzir a uma falta de disposição para trabalhar conosco, um incentivo para tentar contornar-nos. Acho que agora a inclinação será: não vou votar com os americanos, vou procurar outro lugar primeiro para meu investimento, para meu capital, para o mercado, para o que estou fazendo, para os parceiros. Mas não acho que essas medidas necessariamente possam jogar a favor de qualquer país em particular. Talvez China em alguns lugares, União Europeia em outros, Japão em alguns lugares. Vai ser um ambiente muito diferente para os EUA, para as empresas e diplomatas americanos atuarem. Vai ser muito mais difícil.
Essa estratégia de tarifas que o sr. diz ser difícil de entender é vista por alguns analistas como parte da política isolacionista de Trump.
Como meus filhos diriam, isso é tão século passado. Isso é realmente século 19, a ideia de trazer as indústrias, manufatura de volta para os Estados Unidos. Muito pouco da manufatura, acho, vai voltar para os EUA. Temos 4% de desemprego. Não conseguimos preencher os empregos que temos agora, imagina trazendo de volta a manufatura de commodities básicas, como sapatos, brinquedos, esse tipo de coisa. Isso deixou os EUA há muito tempo e foi para o Japão, mudou do Japão para Taiwan, mudou de Taiwan para a Coreia do Sul, mudou da Coreia do Sul para algum lugar e depois mudou para a China e depois para o Vietnã. Essas coisas não estão voltando para cá porque não há lucratividade suficiente para justificar o investimento em robôs e mecanizar essas coisas para trazê-las de volta para os EUA porque nossa força de trabalho é pequena em relação ao tamanho da economia. Não vai voltar.
Até já está mudando da China porque os custos trabalhistas são altos. A falácia na lógica de Trump é que coisas como móveis, construção, têxteis, roupas, manufatura voltariam. E quem realmente faria o trabalho são as pessoas que ele está perseguindo com suas políticas de imigração ridículas.
Trump argumentou que impôs as tarifas para frear supostos abusos contra os EUA que beneficiariam a China. Ele contém Pequim com essa medida?
Não acho que ele realmente se importe em conter a China. Mas a resposta é não. Esses movimentos fazem a China parecer melhor do que realmente é. Pequim aproveitou a retórica de defender a ordem comercial internacional globalizada aberta apresentada sob ataque pelos EUA. Vão tirar proveito disso o quanto puderem. Não creio que as tarifas sejam parte da sua rivalidade com a China. A ascensão chinesa não foi em desvantagem dos EUA economicamente, exceto em desvantagem do Japão, em certa medida da Coreia do Sul, Taiwan, mas não dos EUA. Então, Trump está usando o argumento com declarações falsas, exageradas, distorcidas.
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Podemos testemunhar uma mudança na ordem mundial, o fim da era americana e provavelmente o início de uma era chinesa?
Não.
Nem mesmo como consequências das tarifas?
De jeito nenhum. Parte do problema é a economia da China ser fechada. Uma das razões é não ter uma sociedade de consumo porque as pessoas não têm renda suficiente. Isso por causa da quantidade de riqueza que o Estado extrai para pagar por trens de alta velocidade, estruturas militares, desenvolvimento de energia. Algumas dessas coisas são boas, algumas são excessos. Mas as tarifas dos EUA não vão levar a substituir o tamanho do mercado dos EUA por qualquer outro lugar. Teria que ser um outro lugar muito rico, e a China não é muito rica. A China mal está na categoria de renda média, tem uma renda per capita num nível em que o México está há décadas. Não é binário. Então, tirar os EUA da posição que ocupam, o que não vejo necessariamente como algo ruim, não significa transferir esse posto automaticamente para China, Rússia, União Europeia, Japão, Brasil, os Brics, qualquer outro conjunto de jogadores. É ruim para todo mundo.
A China pode ganhar terreno investindo mais em países afetados pelas tarifas?
A China tem investido mais em países afetados pelas tarifas, como Indonésia e Vietnã. Esses países são muito cautelosos com o investimento chinês por várias razões históricas, em certa medida por razões étnicas. Mas a China está realmente cortando seus investimentos no exterior porque sua própria população se pergunta: por que estamos dando dinheiro a países que são mais ricos do que nós? Essa é uma pergunta razoável.
Eles têm problemas reais para atender às expectativas, demandas e necessidades de sua própria população, que agora é majoritariamente urbana. As cidades têm que funcionar, não se pode dizer: “Volte para a fazenda e faça agricultura sustentável”. Essa fase já passou há muito tempo na China. Então eles têm que gastar mais. Metade da população ainda tem documentos de identidade rural. Isso significa que não recebem educação gratuita além do ensino fundamental. Isso significa que 50% da futura força de trabalho não passou do ensino fundamental. Este é um país com desafios enormes. Eles podem gerenciá-los? Provavelmente sim, mas não há muito espaço de manobra para isso. Sua própria economia em desaceleração será prejudicada por essas tarifas. Não acho que essa seja a intenção de Trump, mas isso os prejudicará.
Qual pode ser o impacto das tarifas para o Brasil e a América Latina? Acha que a China vá ficar mais atraente?
Não tenho conhecimento de commodities específicas de lugares específicos, mas meu ponto de partida geral é que uma distribuição de 10% pela América Latina não terá muito impacto no preço para os consumidores desses países. Vocês exportarão a mesma quantidade, nós pagaremos mais por qualquer que seja a commodity. Flores da Colômbia, uvas, vinho da Argentina ou Chile. Como a tarifa é geral, não dá ao Chile uma vantagem com o vinho sobre a Argentina, porque ambos têm o mesmo. A maior parte do que a América Latina exporta para os Estados Unidos não vai para a China.
Em resumo, quais são as principais consequências das tarifas em termos de cenário geopolítico e no cenário interno?
Isso desestabiliza o sistema de comércio internacional que beneficiou a maioria dos países por muito tempo. Vai forçar ajustes. Isso é o aspecto número um. E o número dois é que minou a imagem dos EUA e, portanto, a influência como um membro estabilizador, previsível e amplamente benéfico da comunidade internacional. Isso perturba economias e mina a influência e atratividade americana.
No fim, alguém pode se beneficiar das políticas tarifárias de Trump?
Ninguém. Esta não é uma política que funciona para o benefício óbvio de mais ninguém. Isso perturba todos. E não há alternativa no sentido do que era a União Soviética durante a Guerra Fria. A China não é isso, e a China não quer ser isso.
Raio-X | Thomas Fingar, 79
Pesquisador afiliado no Centro de Economia e Instituições da China de Stanford e associado do The Shorenstein Asia-Pacific Research Center da instituição, tem doutorado em ciência política pela mesma universidade. Foi vice-diretor de Inteligência Nacional do Departamento de Estado entre 2005 e 2008. Antes, ocupou uma série de cargos no órgão, entre eles o de diretor do Escritório de Análise para o Leste Asiático e o Pacífico (1989-94) e chefe da Divisão da China (1986-89).