Quando Paula, mulher de Paulo Zsa Zsa*, morreu em decorrência de um câncer no cérebro, o empresário acreditava que jamais passaria por uma dor maior. Mas anos depois, o grito da filha Júlia, de 13 anos, abriu uma nova ferida. A adolescente havia tentado tirar a própria vida depois de participar de uma brincadeira online.
“Esse é um assunto urgente, mas não quero que minha filha sofra bullying pelo que aconteceu. Tomo muito cuidado porque é um tema que mexe com ela”, diz Paulo, que decidiu escrever o livro “Aconteceu com a Minha Filha”, usando um pseudônimo para preservar a identidade da família.
O estopim foi um episódio que aconteceu numa noite de setembro de 2024, na casa da família, no Rio de Janeiro. Com sono, Paulo zapeava por um serviço de streaming quando ouviu o grito que o fez despertar na hora.
“Minha vida virou um verdadeiro inferno”, afirma. “Ela gritava ‘me interna, me interna, por favor, eu enlouqueci’, enquanto mostrava os cortes nos braços. Foi desesperador.”
Ele levou a filha imediatamente ao pronto-socorro. A pré-adolescente disse aos médicos que havia cortado a língua, mas apenas um ferimento leve na bochecha foi encontrado. Mais tarde, o pai descobriu que ela havia tentado desenhar uma suástica no próprio rosto.
“Ela não queria falar muito sobre o que aconteceu. Só disse que era um desafio da internet que saiu do controle. Pediu ainda para que não me preocupasse pois tinha feito o símbolo fraquinho”, relembra.
Sem saber como agir, Paulo pediu à funcionária da casa, Dona Tereza, que investigasse o celular da menina. Foi assim que encontrou prints de conversas no aplicativo Discord.
Criado em 2015 e com mais de 200 milhões de usuários pelo mundo, o aplicativo tem como intuito que pessoas criem servidores privados —grupos fechados onde nem sempre há fiscalização efetiva do que é compartilhado. Isso facilita que adolescentes se envolvam em desafios de automutilação e outras práticas de risco sem o conhecimento dos pais ou responsáveis.
Segundo Rodolfo Damiano, psiquiatra especializado em crianças e adolescentes e professor da USP, plataformas como Discord, TikTok e Instagram deixaram de ser apenas canais de consumo passivo para se tornarem ambientes de produção de identidade e busca por pertencimento.
“Hoje os algoritmos mapeiam precisamente as vulnerabilidades emocionais dos usuários, criando bolhas digitais difíceis de romper, principalmente para adolescentes, cujo cérebro ainda está desenvolvendo a autorregulação emocional e o pensamento crítico”, diz.
No caso de Júlia, Paulo descobriu que ela participava de um grupo onde aconteciam jogos chamados “Lulz” — derivados da sigla “LOL” (laughing out loud, ou “rindo alto”). No grupo, adolescentes e alguns adultos incentivaram desafios de automutilação, humilhação pública e comportamentos de risco como forma de entretenimento.
“Eles faziam uma criança se ferir para ganhar aplausos. Minha filha foi vítima e vilã ao mesmo tempo. Uma plateia assistindo e pedindo coisas cada vez piores”, diz Paulo.
Ele passou a investigar o que a filha fazia online. Em um dos vídeos encontrados, a jovem aparece maquiada e fantasiada em estilo cosplay, cumprindo ordens dos membros do grupo.
“Ela sentava e o sangue começava a escorrer dos cortes das pernas. Era como se estivesse sendo guiada ao vivo, fazendo tudo o que pediam.”
Em uma das conversas, um dos participantes, já maior de idade, fez comentários sexuais explícitos sobre as imagens.
“Foi aterrorizante ver aquilo. Fiquei triste, mas também revoltado. A violência era tratada como diversão”, diz o autor.
Para Damiano, conteúdos prejudiciais operam em dois níveis: explícito e implícito. “No explícito, vemos tutoriais de autolesão e fóruns que romantizam a depressão. No implícito, há a hipersexualização precoce, padrões irreais de beleza e a estética do sofrimento —onde dor emocional vira capital social”, afirma.
Depois do episódio, Paulo recolheu todos os aparelhos eletrônicos da filha e reforçou o tratamento psicológico e psiquiátrico.
“Eu fiz o que pude. Tirei a internet, tirei o celular, mas sabia que isso não seria suficiente. Precisava reconstruir nossa relação de confiança”, conta.
Júlia teve outras recaídas nos meses seguintes, mas hoje, segundo o pai, está bem melhor.
“Ela voltou a frequentar a escola, quase não usa mais o celular, gosta de passear no barco da família comigo e com a dona Tereza. Voltei a ver brilho no olhar dela.”
Casos como o de Júlia não são isolados. Segundo dados da SaferNet Brasil, as denúncias de conteúdo violento no Discord aumentaram 272% no primeiro semestre deste ano em comparação a 2024.
Sobre o aumento dos casos para o psiquiatra, é por conta da vulnerabilidade dos adolescentes se explica tanto por fatores neurológicos quanto sociais.
“O cérebro ainda imaturo torna-os biologicamente mais suscetíveis a impulsos e riscos. Ao mesmo tempo, necessidades de pertencimento, reconhecimento e diferenciação, centrais na adolescência, podem ser distorcidas por grupos online problemáticos”, diz.
“A cada notícia que leio sobre crianças vítimas da internet, vejo que esse assunto é urgente. Se minha história puder ajudar a salvar uma vida, já terá valido a pena”, afirma Paulo.