Só para assinantes
Assine UOL

Se o Brasil recebeu ao longo dos últimos 25 anos dezenas de relatores da ONU e da OEA para missões ao país para investigar temas como fome, clima, racismo, violência policial e tantos outros temas. No entanto, poucas vezes uma viagem de um relator ameaça ter um impacto tão grande quanto a de Pedro Vaca, relator da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para Liberdade de Expressão, que terminou no último dia 14.
O motivo é simples: a estratégia do bolsonarismo é o de usar o relatório que será produzido a partir da viagem para, eventualmente, mostrar que existiria censura e uma ditadura no Brasil. O documento, que terá sua primeira versão anunciada no começo de março, poderia ser instrumentalizado para que os aliados de Jair Bolsonaro pressionem a base de Donald Trump a agir contra o Brasil, inclusive diante de uma ação do STF contra o ex-presidente.
De fato, enquanto Vaca estava no país, Eduardo Bolsonaro percorria gabinetes de congressistas da base de Trump em Washington para pedir apoio.
Na preparação para a viagem, esses congressistas escreveram uma carta para a Comissão Interamericana colocando pressão. Segundo eles, se a relatoria de Vaca não lidasse com a censura contra os bolsonaristas, eles exigiriam que Trump encerrasse os repasses para o órgão. Sem esse dinheiro, a OEA estaria paralisada.
Fontes da sociedade civil, governo e STF consultadas pelo UOL admitiram que a viagem tinha o potencial de ser “um desastre” se fosse sequestrada pelo bolsonarismo.
Até então, o governo brasileiro mantinha apenas uma relação protocolar com a relatoria da Comissão Interamericana. Foi um trabalho nos bastidores por parte da sociedade civil que permitiu a aproximação. A percepção de ativistas era de que apenas um comportamento mais aberto por parte do governo Lula permitiria que a relatoria se sentisse confortável para indagar e, eventual, avaliar de forma equilibrada o país.
E o trabalho surtiu efeito. Mauro Vieira, o chanceler, se reuniu com Vaca e reafirmou o compromisso do Brasil com a liberdade de expressão e o combate à desinformação.
No STF, uma reunião com os ministros Luis Roberto Barroso e Alexandre de Moraes também receberam o relator, algo raro em visitas de missões internacionais. A ideia era de que Vaca se sentisse respeitado, diante da atitude do Supremo de prestar contas.
A viagem também foi marcada por tentativas de manipulação. Na reunião que manteve com parlamentares bolsonaristas, a delegação da Comissão Interamericana foi surpreendida com a acusação dos deputados de que o órgão estava atuando para censurá-los. O incidente ocorreu quando as equipes de deputados e senadores bolsonaristas pressionaram a OEA a suspender seu protocolo usado há anos em toda a América Latina e permitir que a reunião fosse filmada.
Com as imagens, esses deputados transformaram suas participações em verdadeiros shows nas redes sociais. Para muitos, Vaca sentiu na pele a agressividade dos bolsonaristas.
Outro fato que marcou a visita foi a transformação de uma de suas declarações à imprensa como instrumento para a extrema direita. Na saída de uma das reuniões, Vaca declarou a um jornalista que estava “impressionado” com os informes. A notícia replicada pela extrema direita era de que ele teria ficado impressionado com os informes da suposta censura que eles tinham apresentado para Vaca.
Horas depois, Vaca desmentiu a versão bolsonarista e afirmou que uma ditadura não recebe um relator. Ele sequer havia dado a declaração na saída de uma reunião com a extrema direita. Assustada, a equipe do relator entendeu que havia ocorrido uma tentativa deliberada de manipulação.
A constatação é de que ele experimentou em primeira mão a confusão deliberada que é promovida pela extrema direita entre informação e desinformação.
Outra estratégia da sociedade civil foi a de garantir que a agenda de Vaca não se limitasse ao debate promovido pelos bolsonaristas. Para isso, os encontros dele com ativistas, organizações e especialistas apontaram como aqueles que se dizem vítimas da censura são, de fato, agentes de censura.
A Abraji, por exemplo, fez levantamento de ataques contra jornalista pela extrema direita e entregou o documento para Vaca.
Um dos encontros ainda considerados como fundamentais foi com os parlamentares que fizeram parte da Comissão de Inquérito do 8 de Janeiro. Na reunião, Vaca recebeu relatos de como existe uma indústria da desinformação que funciona não apenas no caso da democracia, mas também relação às vacinas e tantos outros temas.
Uma semana depois da visita, o sentimento entre membros da sociedade civil e governo é de um certo alívio. Para diversas pessoas que participaram dos encontros, o resultado foi melhor do que se esperava. A questão é como a pressão será agora colocada até que, em início de março, o primeiro informe seja publicado.
A versão final do documento, porém, terá ainda de passar por uma avaliação da Comissão Interamericana e um voto entre seus membros.
Reportagem
Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.