Zanele Muholi não pede por maquiagem e penteados exuberantes quando tira o retrato de alguém. É assim que fotografou a comunidade LGBTQIA+ na África do Sul, seu país de origem, e que continua a acrescentar rostos à sua coleção. “Não é preciso se ajustar a nada”, argumenta.
“É sobre como as pessoas querem ver a si próprias”, diz Muholi, categórica, em meio a montagem de sua primeira mostra individual no Brasil, no Instituto Moreira Salles, que exibe seus principais trabalhos desenvolvidos nos últimos 20 anos e que já passaram por museus de Nova York e Londres.
Agora, os novos retratos da série “Faces & Phases”, que popularizou Muholi no mundo da arte nos anos 2000, são de brasileiros. Muholi está entre idas e vindas do Brasil desde novembro, quando veio a São Paulo para o festival Zum. Abriu um edital restrito a funcionários do coletivo de pessoas trans do IMS, que se candidataram para serem fotografadas. “A maioria das pessoas que responderam eram homens trans”, diz.
A coincidência se relaciona com a própria trajetória de Muholi, que começou a carreira fotografando a comunidade lésbica, na época praticamente inexistente nos registros de países da África —a série, inclusive, está na exposição. Hoje, Muholi se identifica como pessoa trans não binária.
Entre os rostos brasileiros está o de um rapaz negro de dreads, que usa uma camiseta com o letreiro “pesadelo do homem branco”. “Muholi representa esse grupo que poucas vezes esteve comandando a própria representação”, diz Thyago Nogueira, curador e coordenador do IMS.
Segundo ele, além de introduzir novas imagens de arquivo de grupos antes não documentados, Muholi inclui mais ideais de beleza no catálogo da história da arte. “A beleza vai ser definida por nós. Revemos o que é a Vênus e todos os ideias de beleza construídos na cultura ocidental, e como nós, um país colonizado, consumimos e ecoamos esses ideais.”
Muholi também acrescentou novos autorretratos em sua série “Somnyama Ngonyama”, na qual explora a própria imagem para investigar estereótipos físicos criados pela fotografia ocidental, fortemente influenciada pelo colonialismo. As fotos carregam propositalmente um primitivismo que remete a um tempo antigo.
Em “Nanini”, por exemplo, que significa algo como “período de tempo”, Muholi aparece com um colar e braceletes feitos de alfinetes. Seu cabelo está enfeitado com versões gigantes do objeto, em um retrato feito durante a sua passagem por Salvador, na Bahia, na festa de Yemanjá.
Os alfinetes, explica, simbolizam a conexão. “Aquela cerimônia [de Yemanjá] é um esforço comunitário, de unidade, cura e orgulho daquela cultura e religião. Ali não é preciso se encaixar em algo que não é seu”, diz, sobre a continuação de costumes que resistiram à colonização.
Em comum, Brasil e África do Sul passaram as últimas décadas sem a presença de pessoas queer em museus e galerias, algo que vem mudando nos últimos anos —o Masp, por exemplo, tem em cartaz a mostra “Histórias LGBTQIA+” ao mesmo tempo em que Muholi inaugura a sua individual na avenida Paulista.
A dedicação quase que exclusiva ao retrato em sua carreira está ligada a vontade de aproximar as pessoas dos museus, diz. “A primeira coisa que eu vejo em você não são as suas roupas suas pernas ou qualquer outra parte do corpo. Há uma confrontação em ver alguém diante de mim, há algo incomodo que diz, ‘estou aqui, de frente para você, fala comigo'”, diz Muholi. “Há algo que é dito a voz, que exige sua atenção. É como perguntar a alguém quem ela é.”