No culto após a posse, na Igreja Anglicana de Washington, a bispa Mariann Edgar Budde exerceu em plenitude o papel que Gênesis 2.18 prescreve para a mulher. O papel feminino é normalmente traduzido como sendo o de “uma auxiliadora idônea” para o homem, mas o original em hebraico carrega expressões mais fortes.
Segundo o biblista André Wénin em “O Feminino no Gênesis”, a tradução mais próxima para esse versículo seria: “Não é bom que o humano esteja sozinho. Vou fazer para ele um socorro que lhe seja como alguém face a face”. Até há certo tom de oposição, ou seja, a mulher socorre enquanto confronta, e isso por se colocar em frente a ele, face a face.
A psicanalista francesa Marie Balmary em “A Divina Origem” comenta que este papel de socorro e acareação do homem foi dado à mulher porque os demais seres do jardim, não falantes, não poderiam confrontá-lo em palavras sobre seus atos. Como ser que partilha a mesma origem divina, a mulher deve dizer-lhe “cara a cara” o que está errado, alertando-o para não se desviar da tarefa dada por Deus, que é de cuidado da Criação.
A ênfase é de que haverá uma relação de igualdade e simetria, expresso por “como face a face”. Mas este “como” também indica que não serão totalmente iguais, que haverá diferenças entre eles. Aceitar as diferenças entre homem e mulher é o começo de aceitar as diferenças na sociedade, já nos informa Freud.
A bispa Budde justamente alertou Trump de que ele está desprezando e condenando à miséria os não semelhantes a ele. Essa lógica de deixar de fora pessoas da sociedade é perversa. Ela faz uma divisão injusta onde alguns são tachados como bons e corretos e outros recebem o carimbo de maus e errados. Para Trump, imigrantes e transexuais são maus; residentes e heterossexuais são bons.
Freud mostra que tendemos a usar uma defesa contra a ansiedade chamada “projeção”; é o que acontece quando atribuímos as nossas dificuldades a outros. Isso traz alívio por um tempo, mas os problemas continuam ali, e então precisamos achar novos “culpados”! A bispa está confrontando o presidente, apontando que ele usa essa lógica binária simplificadora para ter “infratores” ao alcance, sem precisar resolver os problemas mais profundos da nação. Essa lógica traz sofrimento imenso e injusto para os “escolhidos” como culpados e não resolve as questões de base.
Ao pedir misericórdia para as minorias perseguidas injustamente, a bispa foi socorro para todos os colocados como bodes expiatórios. Coerente com o Evangelho, falou com brandura sobre os desfavorecidos e perseguidos. Além disso, fiel ao papel da mulher no Gênesis, também tentou socorrer o próprio Trump de seu olhar distorcido e destruidor. Jesus também falou duramente com os de coração empedernido, tentando acordá-los para o que verdadeiramente importa no Reino de Deus.
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Muitas vezes tendemos a imaginar as mulheres cristãs como silenciosas, meigas e suaves. Mas esta mulher sábia de 65 anos, mãe e avó, aprendeu que usar a voz para denunciar injustiças faz parte da sua prática de fé em Deus.
No seu livro “How We Learn to Be Brave: Decisive Moments in Life and Faith” (em português: “Como Aprendemos a Ser Corajosos: Momentos Decisivos na Vida e Fé”), conta que se prepara em solitude e silêncio para não calar quando for necessário: “Não estamos no piloto automático; nem estamos engajados pela metade. Estamos, como dizem, totalmente dentro, moldadores do nosso destino e cocriadores com Deus.” Ou seja, cumpre a tarefa dada à mulher no Gênesis, de socorro e confronto para que a Terra continue sendo um bom lugar para todos, para que a ação humana seja de cuidado e não de exploração.
Oramos para que Deus continue lhe dando coragem de socorrer e confrontar, bispa Mariann Edgar Budde, apesar das injúrias e ameaças. Como escreveu Freud, “a verdade precisa ser dita muitas vezes”.