O juiz federal José Jácomo Gimenes, de 67 anos, ingressou na magistratura há três décadas. Ele atua no Juizado Especial Federal de Maringá e há 27 anos é professor no curso de Direito da UEM, universidade estadual localizada na terceira maior cidade do Paraná.
Sem nenhuma conduta questionável na carreira em 30 anos, o magistrado agora é alvo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que atendeu a um pedido do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Gimenes pode ser punido porque concedeu uma sentença, o que é parte de seu trabalho como juiz.
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“No caso da sentença objeto desta informação, não tive nenhuma intenção de desafiar ou descumprir decisão do Supremo Tribunal Federal”, escreveu o magistrado, em informação prestada em 18 de julho à corregedoria do CNJ, órgão que aumentou significativamente as punições contra juízes nos últimos anos, especialmente a quem criticou o Judiciário e a quem atuou na Lava Jato. “Penso que julguei o conflito nos limites em que me foi apresentado pelas partes, assim como faço com os demais processos que tramitam pela vara.”
Mas o corregedor-nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão, admirador confesso de Moraes, rejeitou as justificativas de Gimenes e sugeriu que é “provável a propositura de processo administrativo disciplinar” contra o magistrado. Em 4 de agosto, Salomão deu 15 dias a Gimenes para apresentar sua defesa. “Verifica-se a possível existência de elementos indiciários que apontam a suposta prática de infrações disciplinares.”
O caso analisado por Gimenes
A sentença que despertou a ira de Moraes — e foi inclusive sumariamente cassada pelo ministro em 26 de junho — foi concedida em 27 de maio, em ação de indenização por danos morais, ajuizada pelo advogado e ex-deputado estadual Homero Marchese (Novo-PR). Gimenes mandou a União pagar R$ 20 mil de indenização pela demora na liberação das redes sociais de Marchese, tiradas do ar por ordem de Moraes.
O ex-deputado teve os perfis do Twitter/X, do Facebook e do Instagram bloqueados em 13 de novembro de 2022, em razão de um relatório feito pela Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
As eleições já haviam se encerrado, e a postagem que ensejou a censura — como descobriu posteriormente Marchese (que não foi intimado da ordem de Moraes) — nada tinha a ver com eleição. Ele tinha feito uma postagem sobre a viagem de ministros do STF a Nova York, em 16 de novembro de 2022. Leia mais aqui.
O ex-deputado recorreu da decisão, assim como a Procuradoria-Geral da República (PGR), e Moraes somente autorizou o desbloqueio das redes do ex-parlamentar em 24 de dezembro, com o argumento de atendia a pedido do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para desbloquear redes sociais de deputados federais.
Porém, a decisão continha um equívoco e não listava o Instagram, apenas o Facebook e o Twitter/X. O ex-deputado recorreu em 6 de janeiro de 2023, mas seus embargos de declaração não foram analisados pelo ministro. Em 1º de março, ele decidiu que o STF não era competente para o caso, já que na ocasião Marchese já não era nem mais deputado estadual (ainda se o fosse, a competência seria do Tribunal Regional Federal da 4ª Região). O processo foi remetido à primeira instância da Justiça Federal do Paraná, e Marchese continuava com o perfil no Instagram bloqueado.
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Em 31 de março, o procurador da República do Paraná Adriano Barros Fernandes fez um parecer pelo arquivamento da investigação. Para ele, não existiam quaisquer indícios de incitação ao crime ou tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, crimes imputados por Moraes.
“Ainda que desagradáveis as postagens e, com tom agressivo verbal, não se pode punir, do ponto de vista criminal, as palavras críticas, ainda que ácidas, sob pena de violação ao direito de crítica e da liberdade de expressão, vetor supremo da Constituição Federal de 1988”, escreveu o procurador. Ele também mencionou a “clara mácula ao sistema acusatório” exposta pelo recurso da PGR contra a decisão de Moraes que bloqueou as redes sociais de Marchese.
O juiz federal Sócrates Hopka Herreiras, da 3ª Vara Federal de Maringá, acatou a manifestação pelo arquivamento feita pelo MPF e mandou desbloquear o Instagram de Marchese em 25 de abril. O efetivo desbloqueio aconteceu em 2 de maio.
A sentença favorável a Marchese
Foi analisando todos esses dados que Gimenes concedeu decisão favorável à ação de Marchese, mandando a União indenizar o ex-deputado estadual em R$ 20 mil por erro de procedimento do Poder Judiciário, situação que está prevista na legislação.
Ele acatou parcialmente os pedidos do ex-parlamentar, sem considerar a inclusão de Marchese no Inquérito das Fake News como um erro. O único erro reconhecido foi a demora na liberação do Instagram, entre 24 de dezembro (data que Moraes liberou os demais perfis) e 2 de maio, quando houve a efetiva liberação.
Em sua defesa, Gimenes explicou pormenorizadamente a sentença. “Como se vê, não houve nenhum reconhecimento de censura do STF contra a parte autora, não houve Juízo de ilegalidade do procedimento de inquérito em tramitação no STF e, menos ainda, desrespeito ou desobediência contra a autoridade da decisão que determinou o bloqueio das contas das redes sociais da parte autora”, escreveu Gimenes.
Ele lembrou, por exemplo, que a Advocacia-Geral da União (AGU) — que depois da sentença fez a reclamação a Moraes — não alegou incompetência do juízo nem possível afronta à decisão do STF. “Os argumentos levantados pela União na Reclamação ao STF, usurpação da competência do STF e incompetência do Juizado Federal, não foram apresentados na contestação, caracterizando inovação não apreciada pelo juízo reclamado e que não houve embargos de declaração da União quanto a qualquer ponto da sentença, onde poderia ser demonstrado eventuais obscuridade, contradição ou omissão, permitindo correção e enriquecimento jurídico do julgamento.”
O que decidiu Salomão
O CNJ deverá abrir um processo disciplinar contra o juiz de Maringá. “Do que se observa, aparentemente, o magistrado reclamado colocou tanto a decisão do STF quanto o procedimento adotado na Suprema Corte sob seu escrutínio, o que, por si só, soa bastante heterodoxo, conquanto se trate de decisão judicial”, afirmou Salomão.
Para ele, a decisão de Gimenes “pode ter colaborado para deslegitimar ou interferir na tramitação do Inquérito 4.781/DF”, já que “foi objeto de repercussão em veículos de mídia nacional, com grande repercussão, o que pode ter contribuído para a deslegitimação das investigações em curso no STF”.
A decisão de Moraes, na reclamação da AGU
A AGU apresentou a reclamação em 21 de junho, pedindo a cassação da sentença da sentença de Gimenes. Cinco dias depois, a resposta de Moraes foi contundente contra o juiz do Juizado Especial que ousou desafiar o Supremo Tribunal.
“Houve clara usurpação de competência deste Supremo Tribunal Federal para processar e julgar medida judicial com capacidade para interferir na condução dos autos do Inquérito 4.781/DF, de minha relatoria”, afirmou Moraes.
E prosseguiu: “Ao qualificar e julgar as deliberações que compete exclusivamente a este Supremo Tribunal, no âmbito de inquérito em curso neste tribunal, o juízo de primeira instância desafia, não só a competência deste tribunal, como também o modo de condução de processo que tramita na Corte; circunstância essa que acarreta, inclusive, inequívoco prejuízo às investigações em curso.”
Intimidação dos juízes
Marchese recorreu da decisão de Moraes que cassou a sentença de Gimenes. Segundo ele, o ministro partiu de “pressupostos errados”. “Não é verdade que o juiz de Maringá estava revendo a decisão do Supremo Tribunal Federal”, afirmou. “Não tem absolutamente nada a ver com isso. O juiz está só reconhecendo um erro judiciário, como tantos outros que existem no Judiciário e são reconhecidos diariamente na Justiça brasileira.”
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Para o ex-deputado, não há fundamentos para investigar Gimenes, e a reação de Moraes e do CNJ é apenas um recado para intimidar a magistratura do país. “É só uma maneira de intimidar”, afirmou. “Eles são super-humanos que não erram. E quem achar o contrário vai ser punido. É toda uma estratégia de ameaçar não só os cidadãos, mas também os juízes do Brasil a se submeter exatamente ao que eles querem.”
A repercussão
O advogado Andre Marsiglia disse que investigar um juiz pelo conteúdo de sua decisão afronta princípios do Direito, como o do livre convencimento motivado do magistrado. “O juiz tem garantido constitucionalmente o direito a tomar decisões com total liberdade, desde que motive tecnicamente a decisão”, explicou. “É o que chamamos de princípio do livre convencimento motivado.”
Essa garantia deveria impedir o que Moraes e Salomão pretendem fazer com Gimenes. “Nenhum juiz do STF tem direito a se contrapor a isso, nem o CNJ pode investigar juízes pelo conteúdo de suas decisões”, afirmou Marsiglia a Oeste. “Além de inconstitucional, a conduta pode ser configurada como constrangimento indevido e abuso de poder por parte do STF e do CNJ.”
Também chama atenção o fato de que o erro que ensejou a indenização — a demora excessiva para liberar o Instagram de Marchese — foi cometido por Moraes. Nesse caso, disse Marsiglia, “o STF tinha o direito de reapreciar o caso, mas não o tinha o ministro Moraes que, por ser atingido pela decisão, deveria se declarar suspeito”.
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