Em 31 de março de 1964 o então presidente João Goulart foi deposto de seu cargo e os militares tomaram o poder, dando início a ditadura militar no Brasil.
Pela primeira vez em quatro anos o Ministério da Defesa não comemorou o evento. Por decisão do comandante do Exército, general Tomás Paiva, com anuência do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, não foi publicada a ordem do dia para ser lida em batalhões e quartéis.
O fim da comemoração do golpe militar já era discutido desde a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas foi reforçado após os episódios criminosos no dia 8 de janeiro.
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Entretanto, os clubes Naval, Militar e Aeronáutico celebraram a ocasião nesta sexta-feira (31). Em carta conjunta, afirmaram que não “poderiam deixar de estar alinhados com as Forças Armadas, às quais se vinculam compromissos e ideais para que o 31 de Março de 1964 permaneça vivo na história, somente onde seu legado de pacificação e desenvolvimento do Brasil possa ser compreendido”.
A data para o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) sempre foi de comemoração. Conforme o capitão reformado do Exército Brasileiro, os feitos da referida da ocasião em 1964, que ocasionaram o Golpe Cívico-Militar, foram constitucionais.
Em 2019, seu primeiro ano de governo, o ex-chefe do Executivo autorizou a celebração do evento nos quarteis e guarnições militares pelo país. A ordem do dia era emitida com elogios à ruptura democrática no país. A distribuição de documento com elogio ao golpe foi fato inédito desde a criação do Ministério da Defesa, em 1999. A prática havia sido vetada pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) em 2011, mas ocorria informalmente.
Na época, por meio de seu porta-voz, Otávio Rêgo Barros, o governo Bolsonaro rechaçava a alcunha “golpe” para classificar a mudança de regime em 1964.
“O presidente não considera o 31 de março de 1964 [como] golpe militar. Ele considera que a sociedade reunida, e percebendo o perigo que o país estava vivenciando naquele momento, juntou-se, civis e militares. Nós conseguimos recuperar e recolocar o nosso país num rumo que, salvo melhor juízo, se isso não tivesse ocorrido, hoje nós estaríamos tendo algum tipo de governo aqui que não seria bom para ninguém”, disse Rêgo Barros à época.
Há um ano, em seu último discurso na data enquanto estava no poder, o então chefe do Executivo questionava: “Hoje, são 31 de março (sic). O que aconteceu nesse dia? Nada. A história não registra nenhum presidente da República tendo perdido seu mandato nesse dia”.
“Por que então a mentira? Há quem ela se presta? O Congresso Nacional, no dia 2 de abril de 1964, votou pela vacância de João Goulart, com voto inclusive de Ulysses Guimarães. Quem assumiu o governo nesse dia? Não foi nenhum militar. Foi um deputado federal. Presidente da Câmara de nome Ranieri Mazzilli. Por que omitir isso?”, continuou.
Também no ano passado, na ordem do dia publicada pelo então ministro da Defesa, Walter Braga Netto, alega que com o dito cenário em março de 1964, tanto a população, como igrejas, imprensa, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), as Forças Armadas “aliaram-se, reagiram e mobilizaram-se nas ruas, para restabelecer a ordem e para impedir que um regime totalitário fosse implantado no Brasil, por grupos que propagavam promessas falaciosas, que, depois, fracassou em várias partes do mundo. Tudo isso pode ser comprovado pelos registros dos principais veículos de comunicação do período.”
A CNN ouviu especialistas para entender o episódio e as terminologias utilizadas pelos governos antagônicos.
Governo Jânio Quadros e a Campanha da legalidade
Do Partido Democrata Cristão (PDC) e com apoio da União Democrática Nacional (UDN), Jânio Quadros foi eleito presidente após derrotar o marechal Texeira Lott, do antigo Partido Social Democrático (PSD), em 3 de outubro de 1960.
Junto, João Goulart, que era da chapa de Teixeira Lott, se tornou vice-presidente. Conforme o sistema eleitoral da época, a votação para presidente e vice eram separadas.
Jânio foi o primeiro chefe do Executivo a tomar posse em Brasília, a nova capital federal, em 1961. Em sua administração, adotou uma política interna rigorosa, com a proibição do uso de biquínis na praia e das rinhas de galo, por exemplo. Ao mesmo tempo que dava preferência por uma política externa independente, conversando com vários países.
A época era marcada pela Guerra Fria, protagonizada pelos Estados Unidos e a União Soviética.
Dois anos antes da eleição de Quadros, ocorreu a Revolução Cubana, com a queda do governo pró-EUA de Fulgencio Batista e a ascensão do Movimento 26 de Julho, liderado por Fidel Castro.
O professor de história e sociologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie Wesley Espinosa Santana explica que a liderança de Castro, junto com um dos outros líderes Ernesto Che Guevara, foram responsáveis pela “estatização de todas as empresas estrangeiras, sobretudo as estadunidenses, de frutas, tabaco, açúcar, que exploravam a mão de obra em Cuba, que tinham muito lucro”.
Espinosa Santana diz ainda que Jânio tentava ser um liberal “se aproximando do que chamaríamos da esquerda pró-União Soviética”. Isso gerou a desconfiança de setores influentes que defendiam um alinhamento com os Estados Unidos.
O estopim para a crise acontece em 17 de agosto, quando o então presidente brasileiro condecorou Che Guevara com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, a mais alta comenda brasileira.
“Com esse hibridismo, de um lado o conservadorismo nos costumes, e de outro lado sendo mais liberal, vai contaminar a classe média, as elites industrial e agrícola e os militares, que vão é achar um perigo eminente”, cita Espinosa Santana.
Após seu rompimento com a UDN, sendo atacado pela imprensa e no Congresso Nacional, e por Carlos Lacerda, então governador da Guanabara (estado formado após a saída da capital federal do Rio de Janeiro), que o acusou de estar tramando um golpe de Estado, Jânio renuncia em 25 de agosto.
Como João Goulart estava em uma viagem à China, o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, assumiu o governo interinamente.
“Em 1961, a China estava sendo governada por Mao Tse Tung, e ai você tem uma situação que vai complicar ainda mais aquilo que a classe médias, as elites, os militares e os empresários brasileiros já tinham medo. Então eles tem o apoio do governo estadunidense”, expõe o professor.
Entretanto, para Jango chegar ao poder, foi necessária a criação da Campanha da Legalidade. O movimento foi organização pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e setores da populares, aliado à mobilização do Exército no Rio Grande do Sul, com a liderança do então governador do estado, Lionel Brizola.
“A campanha da legalidade é produtiva, os militares ficaram um passo atrás entre eles mesmo, você tem disputas, você tem grupos de militares que apoiam o João Goulart assumir a presidência. Então essa campanha é vitoriosa com o João Goulart com a volta dele e ele assume a presidência”, declara Espinosa Santana.
Conforme explica o professor do curso de História e do curso de Direito da PUC-SP Dr. Luiz Antonio Dias, “no entanto, João Goulart foi obrigado a aceitar a Emenda Constitucional que implantou o parlamentarismo. Ou seja, Goulart tomaria posse, mas teria limites para governar, temos aqui uma espécie de Golpe Parlamentar”.
No dia 7 de Setembro Goulart tomou posse da Presidência da República, e o deputado Tancredo Neves, do PSD, assumiu o cargo de primeiro-ministro.
Após um plebiscito em janeiro de 1963, o presidencialismo voltou a ser o regime adotado no país. Agora com poder total, Jango decide encaminhas propostas de reforma agrária e urbana, que foram rejeitadas pelo Congresso Nacional. Isso levou a forte reação por grupos de esquerda.
Em setembro daquele ano, os sargentos, cabos e suboficiais das Forças Armadas se rebelaram, querendo o direito de exercer mandatos parlamentares nas três esferas de governo, o que contrariava a Constituição de 1946. Ainda no campo, as invasões promovidas pelas Ligas Camponesas intensificaram os conflitos por posses de terras.
A queda
João Goulart resolve promover grandes comícios no começo de 1964 a fim de criar uma grande mobilização popular em favor das reformas de base.
O primeiro grande evento acontece no dia 13 de março, no Rio de Janeiro, em que aproximadamente 200 mil pessoas comparecem ao Comício das Reformas.
Na ocasião, o então presidente faz uma série de anúncios, como: o tabelamento de aluguéis; nacionalização das refinarias de petróleo que pertenciam ao capital privado; a desapropriação de terras dos grandes açudes públicos e às margens das rodovias e ferrovias, o que seria o princípio da reforma agrária.
Para o professor Luiz Antonio Dias, o episódio, em certa medida, marcou “definitivamente a guinada de Goulart à esquerda”. “As críticas da imprensa foram contundentes, no sentido de criminalizar o evento e, também, de indicar que a sociedade, de forma geral, não compactuava com essas reformas. Esse episódio deu mais argumentos para legitimar a intervenção militar”, explica.
“Nesse sentido, é importante salientar que Goulart — e suas Reformas de Base — sempre teve um amplo apoio popular, algo que sempre foi negado, e eu mostro em meu último livro (Vozes de 1964: Imprensa, Militares e Opinião Pública) esse apoio a partir da análise de pesquisas de opinião que foram realizadas em 1964 e ficaram escondidas por décadas”, continua.
“Em uma das pesquisas que analiso, o Ibope realizado entre 09 e 26 de março de 1964, em várias cidades, com 500 entrevistados em São Paulo e Rio de Janeiro e 400 nas demais cidades – observei que no Rio de Janeiro 82% dos entrevistas aprovavam a Reforma Agrária, a menos taxa de apoio ocorre em Curitiba, ainda assim com 61% de aprovação”.
Após seis dias do comício, forças conservadoras da sociedade promovem, em São Paulo, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, reunindo cerca de 500 mil pessoas, mostrando o apoio civil à causa.
Dias aponta ainda outras causas: a Revolta dos Marinheiros, “esse episódio muitas vezes apontado como a causa do golpe de 1964, nada mais foi do que a “gota d’água” de um movimento golpista que já vinha caminhando a passos largos”.
No dia 30 de março há ainda o o discurso de Goulart aos sargentos, no Automóvel Clube, no Rio, que trouxe ainda mais críticas da imprensa. “Esse discurso, transmitido pela televisão, acabou contribuindo para antecipar o golpe que deveria ocorrer ainda em abril”, explica.
Na madrugada do então dia 31 de março, o general Mourão Filho colocou suas tropas em marcha em direção ao Rio de Janeiro. No dia 1º de abril, Goulart viria a ser deposto.
Em 2 de abril Ranieri Mazzilli assume novamente o governo de forma interina. No dia seguinte, com o poder na mão dos militares, é desencadeada uma onda de prisão de líderes políticos, sindicais e camponeses em todo o Brasil. Jango se refugiou no Uruguai.
Em 9 de abril o Supremo Comando Revolucionário, formado pelo general Costa e Silva, o vice-almirante Augusto Redemaker e o tenente-brigadeiro do ar Correia de Melo, decretam o Ato Institucional nº 1 (AI-1), que permitiu a cassação de mandatos legislativos, suspensão de direitos políticos e a punição de integrantes da administração pública.
Em 11 de abril Costa e Silva é eleito presidente da República, em uma eleição indireta. Ele recebeu 361 votos favoráveis, 72 abstenções, em grande parte de representantes do PTB, e 37 ausências. A posse ocorreu em 15 de abril.
Seu mandato incialmente seria até janeiro de 1966, concluindo os cinco anos do mandato de Jânio Quadros. Entretanto houve a suspensão das eleições de 1965.
Golpe ou Revolução?
Os termos golpe e revolução são utilizados para se referir ao 31 de março por grupos antagônicos. Na análise do professor Luiz Antonio Dias, foi um Golpe de Estado. Ele cita que a “diferença básica entre uma revolução e golpe (civil ou militar) está no senso comum de que revolução é quando se tem apoio popular, enquanto um golpe é praticado por um grupo que atua distante dos interesses da nação, defendendo posições da elite dominante”.
“No golpe de estado, normalmente o poder é tomado por alguma liderança de setores-chave da burocracia estatal (por exemplo chefes militares), assim não existe golpe de estado sem participação ativa ou neutralidade/cumplicidade das Forças Armadas. Após o golpe de estado temos uma nova “legalidade” que é implantada com ajuda das instituições de estado, veículos de comunicação, etc”, continua Dias.
Assim, o Golpe Civil Militar de 1964 foi a derrubada de um presidente, constitucionalmente empossado, para a implantação de um governo autoritário, ilegítimo e violento. Em 1964, grande parte imprensa, apresentando-se como porta-voz da opinião pública, saudou a instalação desse governo autoritário e ilegítimo como se fosse democrático e legal
Dr. Luiz Antonio Dias, prof. do curso de História e do curso de Direito da PUC-SP.
A opinião vai de encontro com a do professor Wesley Espinosa Santana. “Quando nós falamos em golpe de Estado ou revolução, você vê que na historiografia brasileira e em outros países, tem as duas. Lógico, é muito mais um golpe de Estado na tomada do Poder à força pelos militares com apoio civil e dos Estados Unidos do que uma revolução”.
“Aqui eu vou me espelhar nos textos de Florestan Fernandes onde ele fala que a revolução é um movimento de reestruturação da sociedade todos os aspectos. E a revolução ela tem uma conotação positiva, de evoluir para melhor, para mudar salvando a sociedade, o país, a nação daquilo que atraso daquilo que é atraso e um problema, que eles diziam que era o comunismo. O conceito de revolução de 64 para mim não funciona. O que funciona é o golpe de 1964”, argumenta.
(*Com informações da Agência Brasil e da Câmara dos Deputados)
Este conteúdo foi originalmente publicado em 31 de Março: data ainda gera debates entre direita e esquerda sobre golpe ou revolução no site CNN Brasil.